Book Review: “Ressurreição” de Liev Tolstói

Direito na Literatura

“Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto, eis um novo detento”

Diário de um Detento. Racionais Mc.

Ler “Ressurreição” é nadar contra a maré. É abrir a mente para a perspectiva de milhões de pessoas que hoje estão no cárcere. É sair da zona de conforto e entender mais profundamente como o sistema criminal funciona.

“Ressureição” é um livro atemporal e que, por isso, se encaixa na realidade que temos hoje em pleno século XXI. O livro questiona pontos básicos do Direito Penal, como a finalidade da pena e o próprio sistema carcerário. Por esse motivo, entendo que a melhor maneira de abordar essa resenha é pegar uma citação atual e que segue a mesma proposta da obra.

O Tolstói que conheci em “Ressurreição” (seu último trabalho) é diferente daquele que escreveu “Anna Karênina” e “Guerra e Paz”. O dom da escrita segue o mesmo, mas a abordagem e realidade dos personagens contrasta muito com as outras obras, pois o foco é o próprio sistema criminal. Foi incrível conhecer essa faceta de Tolstói e ler esse livro que se tornou um dos meu favoritos da vida.

O livro é baseado em no caso real de um rapaz nobre que participa como jurado no julgamento do crime de uma antiga camponesa conhecida por ele. Por diversos motivos, ele se sente culpado pela vida que ela estava levando (sem spoilers) e, além disso, a mulher também acaba sendo presa injustamente. Nesse sentido, o rapaz busca meios de redimir seus pecados e ter uma vida limpa e justa. Ele nem sempre busca a maneira mais correta, e isso é genial porque permite que ninguém seja 100% bom ou mau o tempo inteiro (nem mesmo os outros personagens).

No fim, não se sabe ao certo de quem é a ressurreição. Mas o sentido bíblico da palavra é altamente utilizado e tem diversas referências – como os principais acontecimentos ocorrem perto do período da Quaresma e até mesmo partes que recordam Mt 25, 36.

As reflexões que o personagem principal faz não são apenas profundas, como também necessárias. O livro é essencial para as pessoas compreenderem a realidade social brasileira, na medida em que o Brasil é o país que mais prende pessoas no mundo e possui um sistema criminal/prisional problemático. Eu acredito que todo mundo deveria ler o livro, independente se é operador do Direito ou não. É uma lição de empatia e aguça o sentido crítico e filosófico.

A leitura me lembrou outras obras igualmente importantes e críticas, como o filme “13a emenda” (disponível na Netflix) e os livros abaixo:

Os links acima são afiliados.

Além disso, tenho um vídeo que mostra um pouco sobre as reflexões feitas pelo protagonista (minuto 4:37). O vídeo é sobre o universo de Harry Potter, mas segue a mesma linha proposta pelo protagonista de “Ressurreição”:

Direito e Literatura: Middlemarch, Testamentos e a “Mão Morta”

Direito na Literatura

Sem spoilers!

Quem leu a obra “Middlemarch” sabe que os mortos continuam influenciando a vida dos vivos por meio de seus testamentos. Esses documentos, além de impactarem a vida de diversos personagens, também são um instrumento jurídico, e acho importante (e legal) dividir um pouco sobre eles na perspectiva da Inglaterra retratada por George Eliot.

Enquanto desenvolvia a obra entre 1º de novembro e 17 de dezembro de 1869, George Eliot leu “Ancient Law: its connection with the early history of society and its relation to modern ideas” de Henry Maine. Nesta obra, ela teve contato com leis romanas que explicavam as raízes dos princípios da lei inglesa. Com base nessa leitura, ela incluiu algumas questões jurídicas em Middlemarch, em especial sobre testamentos.

Na Inglaterra Vitoriana

Na Inglaterra vitoriana, existia um enorme interesse nos testamentos, pois esses documentos poderiam conter fofocas, como declarações amargas por parte do falecido e até mesmo desaprovações. A obsessão por testamentos pode ter como influência esses aspectos incomuns que o falecido deixava no documento, além de também não existir a obrigatoriedade de passar propriedades aos filhos e cônjuges. Um caso muito interessante é o de Sir Thomas May de Londres, que em 1887 deixou um xelim para sua esposa e filha, enquanto legava uma soma anual de £100 para seu empregado (uma quantia grande para a época!).

Ainda que atiçasse a curiosidade alheia, os testamentos não eram comuns. Em 1850, apenas cerca de 15% dos adultos que morreram deixaram riqueza suficiente para fazer da herança um assunto que valesse a pena; a maioria das pessoas morria sem nada ou estavam endividadas.

Mesmo entre aqueles que tinham algo para deixar, as desigualdades eram gritantes. Em 1911, 90% das propriedades eram avaliadas em menos de £1.000 – coletivamente, elas representavam apenas 10% da riqueza total passada na morte. No outro extremo do espectro, apenas 0,1% das propriedades estavam avaliadas em mais de £50.000, embora coletivamente essas propriedades representassem 38% da riqueza total.

Os fundos (trusts) eram uma ferramenta comum para garantir que as crianças se beneficiassem, com o tempo, da riqueza deixada pelos pais. Na morte de uma pessoa com propriedades, a maior parte de sua riqueza passaria para administradores nomeados. Quando a cônjuge do proprietário falecido morria, ou quando os filhos atingiam a idade adulta, os bens mantidos em confiança eram divididos ou vendidos pelos curadores e compartilhados, geralmente igualmente, entre todos os filhos sobreviventes.

Mão Morta e Entidades Religiosas

Além dessa curiosa sobre o período vitoriano, há algo interessante em um dos testamentos que aparecem em Middlemarch – que é a famosa “mão morta”. Para entender o que é essa “mão morta”, é preciso voltar um pouco no tempo:

Na Inglaterra medieval, a propriedade do inquilino de um feudo estava sempre sujeita à vontade de seu Senhor. Se as circunstâncias legais daquele inquilino mudassem de alguma forma – se ele se casasse, por exemplo, ou morresse, ou cometesse um crime – então aquela propriedade era revertida e o Senhor poderia escolher com qual feudo substituí-la. No entanto, essa liberdade era negada quando os inquilinos doavam a propriedade a uma entidade religiosa – pois a Igreja é uma instituição que não morria, não se casava ou mudava de qualquer forma seu status legal em benefício do Senhor, e o arrendatário era livre para mantê-las sob a égide do corpo religioso.

Os feudos também geravam impostos para o rei, principalmente sobre a concessão ou herança de uma propriedade. Se um imóvel se tornasse propriedade de uma entidade religiosa que nunca poderia morrer, esses impostos nunca seriam devidos. Era semelhante às propriedades pertencentes aos mortos, daí o termo “Mão morta” – mort main.

Uma vez que a terra passou para o controle da Igreja, ela nunca poderia ser abandonada. Como a Igreja nunca morreria, a terra nunca poderia ser herdada por morte (portanto, nenhuma taxa poderia ser cobrada pela entrada do herdeiro), nem poderia ser roubada ao senhor (perdida por falta de herdeiro). Isso veio a ser conhecido como a “mão morta” (francês: mortmain) – a Igreja (uma entidade não viva) representava essa mão morta, ou a mão era a do doador morto, que na verdade ainda controlava a terra como se vivo estivesse. Assim, as ações de homens que morreram gerações antes continuaram a controlar suas antigas terras (assim como acontece com um personagem de Middlemarch que morreu e, ainda assim, controla a sua propriedade).

Os Estatutos de Mortmain visavam restabelecer a proibição de doar terras à Igreja com o objetivo de evitar serviços feudais, uma proibição que se originou na Carta Magna de 1215. Os Estatutos de Mortmain previam que nenhuma propriedade poderia ser concedida a uma corporação sem o consentimento real e de seu Senhorio.

Pela Lei de 1279, que é uma parte dos Estatutos de Mortmain, nenhuma pessoa religiosa tinha permissão para adquirir terras. Se o fizessem, a terra era confiscada ao senhor feudal imediato, que teria um breve período para confiscar a propriedade. Se não o fizesse, o senhor logo acima dele (na hierarquia feudal) teria uma oportunidade semelhante.

No entanto, estes Estatutos revelaram-se ineficazes na prática. Pois se o suserano estivesse disposto, a terra ainda poderia ser doada a uma casa religiosa com sua cumplicidade, ou seja, por sua inação. E licenças do rei para adquirir terras em mortmain foram facilmente obtidas naqueles anos, pois Henrique III era simpatizante dos corpos religiosos durante seu longo reinado.

As leis referentes ao mort main existiram na Inglaterra desde o século XIII até que foram finalmente revogadas em 1960.

Fontes: Professor Alastair Owens: https://www.qmul.ac.uk/geog/news/2017/items/keeping-it-in-the-family-inheritance-in-victorian-and-edwardian-britain.html I David Clifford: https://digitalcommons.unl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1267&context=ger I Pollock and Maitland, History of English Law, Vol 1., p. 329, Cambridge University Press, 1968

Book Review: “A inquilina de Wildfell Hall” de Anne Brontë

Direito na Literatura, Resenhas

Que livro misterioso foi esse! Anne Brontë nos presenteou com essa obra-prima única e cheia de surpresas. O livro foi publicado em 1848 sob o pseudônimo de Acton Bell e foi um sucesso instantâneo! mas após a morte de Anne, sua irmã Charlotte impediu sua republicação na Inglaterra até 1854.

Tudo estava claro e ordenado até a chegada de uma nova vizinha… Helen Graham, uma jovem viúva que se muda para Wildfell Hall (uma mansão elizabetana) com o seu filho e uma empregada. Pouco se sabe sobre Helen… na verdade, os vizinhos sabem praticamente nada sobre ela. E quanto mais eles tentam descobrir, menos ela revela sobre si, gerando uma insatisfação coletiva e o desejo por fofocas.

As fofocas começam a circular por toda a vizinhança, mas não convencem Gilbert Markham, um jovem fazendeiro da região. Gilbert decide descobrir a verdade sobre essa mulher tão curiosa e acaba se tornando o narrador perfeito!

O livro é escrito no formato de cartas, que Gilbert envia para o seu amigo sobre suas descobertas. Mas o que deixa Helen ser tão misteriosa? Isso só poderá ser respondido ao ler o livro, mas o que choca a população é o quanto Helen quebra as normas sociais de sua época (sua forma de sustento, forma de educar o seu filho, visão sobre casamento, etc).

Até aqui já deu para perceber que o livro trata sobre diversos assuntos e, por isso, acho que é tão profundo e completo. Anne navegou a fundo nas questões de sua época e no que realmente significava ser uma mulher do século XVIII, pois dá para “sentir na pele” muitas das questões que existem até hoje na nossa sociedade (dependência química, violência doméstica, casamento, maternidade, direito das mulheres, etc).

A experiência de ter lido tudo isso na perspectiva de uma mulher da época deixou tudo ainda mais latente e me sinto grata por ter tido a oportunidade de ter lido essa obra de Anne Brontë e o contato com a sua escrita única e envolvente. É completamente diferente do que vemos com outras obras de época e muito mais paupável… muitos risos, apertos, lágrimas e emoção!

É muito cômodo pensarmos que as mulheres não tinham direitos na época e que tudo era “pacífico”… Essa não é a verdade e Anne Brontë desmistifica isso nos mostrando como as mulheres resistiam (cada uma à sua maneira). Lembrando que até a aprovação do Married Women’s Property Act em 1870, uma esposa não tinha existência independente sob a lei inglesa e, portanto, nenhum direito de possuir propriedade ou celebrar contratos separadamente de seu marido, ou processar por divórcio, ou pelo controle e custódia de seus filhos.

Eu gostaria de escrever realmente TUDO o que senti com esse livro, mas quero que mais pessoas leiam e se surpreendam como eu na leitura. Esse livro tem um espaço especial no meu coração e espero que ele também ganhe um no de você que está lendo esse texto. Li o livro em inglês e, para praticar o idioma, acompanhei a leitura com o audiolivro abaixo:

Caso queira conhecer mais sobre o Direito Civil da época, veja o vídeo abaixo ou acesse a página do Livros de Lei no Instagram ou no Spotify.

Onde comprar livros estrangeiros?

Direito na Literatura

Já que estamos no clima de Prime Day, acho interessante dar uma olhada em outros sites também para a compra de livros estrangeiros. Mas por que livros estrangeiros? Eu gosto muito de aprender idiomas e a leitura é fundamental para a minha forma de estudo. Além da minha língua materna, falo também inglês, espanhol e alemão – então as recomendações de sites são feitas com base na minha experiência com esses idiomas.

Amazon: a Amazon Brasil tem muitas opções e preços bastante competitivos (já em reais) para livros em inglês. A entrega costuma a ser super rápida (especialmente se você é Prime), então é sempre a minha primeira opção na busca de uma nova compra. O defeito é que o site é totalmente fora de mão para espanhol e alemão: sem opções e preços caríssimos. 

Waterstones.com: é uma loja britânica com muitas opções. O formato desse site é ótimo (especialmente pq da para rastrear a sua compra)! Recomendo para compras em inglês, espanhol e alemão. O preço está em libras, então precisa ficar com a calculadora perto 👀 o frete é em torno de £12.50 e o prazo pode variar de 7-10 dias úteis. Pode estar sujeito a impostos de importação quando chegar no Brasil. 

Book Depository: esse também é um site britânico que vende uma quantidade enorme de livros do mundo todo. O frete é de graça, mas a entrega não é rastreável e demora para chegar (10-25 dias úteis). É excelente para comprar livros que não tenham na Amazon Brasil, mas o preço não é tão competitivo. 

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Livros de Lei de volta ao YouTube!

Direito na Literatura

Olá, pessoal! Eu espero que vocês estejam todos bem, pois hoje venho com uma notícia boa 🙂

Depois de dois anos, o Livros de Lei voltou ao YouTube. Essa decisão não foi fácil, pois o YouTube não é uma plataforma que eu gosto e tampouco me identifico. Acredito que há muitos pontos problemáticos nela, mas quero que o conteúdo sobre Direito e Literatura esteja o mais acessível possível para todo mundo e, por isso, acabei voltando para a plataforma.

Agora os vídeos que publico no IGTV também estarão disponíveis por lá. Espero que vocês assistam e gostem, há conteúdo sobre Harry Potter, Jane Austen entre outros.

“A solidão da América Latina” por Gabriel García Márquez

Direito na Literatura

O discurso está transcrito após o vídeo 🙂

Em 1982, o escritor Gabriel García Márquez foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de suas obras, incluindo a célere “Cem anos de solidão”. Segundo a Academia, Gabo foi premiado “pelos seus romances e contos, em que o fantástico e o real se combinam num mundo densamente composto pela imaginação, refletindo a vida e os conflitos de um continente”.

A ida de Gabo para receber o prêmio na Suécia foi um evento icônico. Gabo celebrou com músicos latino-americanos e bastante festa. Além disso, foi a oportunidade de fazer um dos discursos mais icônicos de todos (e o meu preferido de toda a vida!).

O discurso é um texto de esperança e que descreve o cenário social na América Latina. A solidão da América Latina existe devido a sua especificidade no mundo… uma região em que não há liberdade para escolher a maneira em que se morre, mas que é morada de um povo alegre e sonhador. O discurso permitiu que os outros países (em especial os do norte) olhassem para a América Latina e entendessem o motivo dessa solidão imposta.

Conteúdo do discurso:

“Antonio Pigafetta, navegador florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem em volta do mundo, escreveu, na ocasião de sua passagem pelas terras do sul de nossa América, um relato minuciosamente apurado, mas que na verdade parece mais um delírio fantasioso.

Nessa viagem, ele diz que viu porcos com umbigos nas ancas, pássaros sem garras cujas fêmeas botavam os ovos nas costas de seus parceiros, e ainda outros, lembrando pelicanos deslinguados, com bicos feito colheres.

Ele disse ter visto uma criatura desengonçada, com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo e pernas de veado, que relinchava como cavalo. Descreveu como o primeiro nativo encontrado na Patagônia se olhou no espelho, e em seguida, o impassível gigante, perdeu a razão, aterrorizado com sua própria imagem.

Este curto e fascinante livro, que já naquela época continha as sementes de nossos atuais romances, é sem dúvida o mais pungente relato da realidade nossa daquele tempo.

Os cronistas das Índias nos deixou outros incontáveis relatos. Eldorado, nossa terra ilusória e tão avidamente procurada, apareceu em numerosos mapas durante anos, deslocando-se de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos.

Em sua procura pela fonte da eterna juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou o norte do México por oito anos, numa iludida expedição cujos membros devoraram uns aos outros e, dos seiscentos que foram, apenas cinco voltaram.

Um dos muitos mistérios inimagináveis daquela época é o das onze mil mulas, cada uma carregando cinqüenta quilos de ouro, que um dia deixaram Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Depois disso, no tempo das colônias, galinhas vendidas em Cartagena de Índias eram criadas em terrenos de aluviões e em suas moelas eram encontradas pequenas pepitas de ouro.

A cobiça de ouro de nossos fundadores nos perseguiu até recentemente. No fim do último século [XIX], uma missão alemã, indicada para estudar a construção de uma ferrovia inter-oceânica, através do istmo do Panamá, concluiu que o projeto era viável com uma condição: que os trilhos não fossem feitos com aço, que era raro na região, mas com ouro.

Nossa independência da dominação dos espanhóis não nos pôs fora do alcance da loucura. O general Antonio López de Santana, três vezes ditador do México, providenciou um magnífico funeral para a perna direita que ele perdera na chamada Guerra dos Pastéis. O general Gabriel García Moreno governou o Equador por 16 anos como um monarca absoluto; em seu velório, o corpo ficou sentado na cadeira presidencial, vestido com o uniforme completo e decorado com uma camada protetora de medalhas.

O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teosófico de El Salvador, que teve 30 mil camponeses aniquilados num massacre selvagem, inventou um pêndulo para detectar veneno em sua comida, e mantinha as lâmpadas das ruas envolvidas em papel vermelho para vencer uma epidemia de escarlatina. A estátua do general Francisco Morazán, na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade do marechal Ney, comprada num depósito de esculturas de segunda mão em Paris.

Onze anos atrás [1971], o chileno Pablo Neruda, um dos brilhantes poetas de nosso tempo, iluminou este público com suas palavras. Desde então, os europeus de boa vontade – e às vezes aqueles de má vontade também – têm sido arrebatados, com cada vez mais força, pelas novidades fantásticas da América Latina, esse reino sem fronteiras de homens alucinados e mulheres históricas, cuja infinita obstinação se confunde com a lenda.

Não temos tido sequer um minuto de sossego. Um prometéico presidente, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho; e dois suspeitos acidentes de avião, ainda por explicar, abreviaram a vida de um grande presidente e a de um militar democrata que tinha ressuscitado a dignidade de seu povo.

Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares; surgiu um diabólico ditador que está realizando em nome de Deus o primeiro etnocídio da América Latina de nosso tempo. Nesse ínterim, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de completar um ano de vida – mais do que as que nasceram na Europa desde 1970.

Os desaparecidos pela repressão chegam a quase 220 mil. É como se ninguém soubesse onde foi parar a população inteira de Uppsala. Várias mulheres presas grávidas deram à luz nas prisões argentinas, e ainda ninguém sabe do paradeiro e da identidade de seus filhos, que foram furtivamente adotados ou enviados para orfanatos por ordem das autoridades militares.

Porque tentaram mudar esta situação, quase 200 mil homens e mulheres morreram em todo o continente, e mais de cem mil perderam suas vidas em três pequenos e malfadados países da América Central: Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, seria o equivalente a um milhão e seiscentos mil mortes violentas em quatro anos.

Um milhão de pessoas abandonaram o Chile, um país com tradição de hospitalidade – ou seja, doze por cento da população. O Uruguai, pequenina nação de dois milhões e meio de habitantes, que se considerava o país mais civilizado do continente, perdeu para o exílio um em cada cinco de seus cidadãos.

Desde 1979, a guerra civil de El Salvador vem produzindo quase um refugiado a cada vinte minutos. O país que se poderia criar com todos os exilados e emigrantes forçados da América Latina teria uma população maior que a da Noruega.

Ouso dizer que é esta desproporcional realidade, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso.

Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão.

E se estas dificuldades, cuja essência compartilhamos, nos atrasa, é compreensível que os talentos racionais desta parte do mundo, exaltados na contemplação de sua própria cultura, se encontrem sem meios apropriados de nos interpretar.

É simplesmente natural que eles insistam em nos medir com o mesmo bastão que medem a si mesmos, se esquecendo de que as intempéries da vida não são as mesmas para todos, e que a busca pela nossa própria identidade é tão árdua e sangrenta para nós quanto foi para eles.

A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários.

A venerável Europa talvez pudesse ser mais perceptiva se tentasse nos ver em seu próprio passado. Se ela recordasse simplesmente que Londres levou 300 anos para construir seu primeiro muro, e mais 300 para ter um bispo; que Roma labutou numa penumbra de incertezas por 20 séculos, até que um rei etrusco a fizesse entrar para a história; e que a pacífica Suíça de hoje, que nos deleita com seus leves queijos e simpáticos relógios, derramou o sangue da Europa como soldados mercenários, no final do século XVI. Mesmo no alto da Renascença, 12 mil lansquenetes pagos pelo exército imperial saqueou e devastou Roma e trespassou oito mil de seus habitantes na espada.

Não quero incorporar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de unir um casto norte a um sul apaixonado foram exaltados aqui, há 53 anos, por Thomas Mann. Mas realmente acredito que aqueles europeus esclarecidos que lutaram, inclusive aqui, por um lar mais justo e humano, pudesse nos ajudar muito melhor se reconsiderassem sua maneira der nos ver.

A solidariedade com nossos sonhos não vai nos fazer menos solitários, enquanto isso não for traduzido em atos concretos de apoio legítimo às pessoas que aceitam a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.

A América Latina não quer, nem tem qualquer razão para querer, ser massa de manobra sem vontade própria; nem é meramente um pensamento desejoso que sua busca por independência e originalidade deva se tornar uma aspiração do Ocidente. No entanto, a expansão marítima que estreitou essa distância entre nossas Américas e a Europa parece, ao contrário, ter acentuado nosso distanciamento cultural.

Por que a originalidade nos foi agraciada tão prontamente na literatura e tão desconfiadamente nos foi negada em nossas difíceis tentativas de mudanças sociais? Por que pensar que a justiça social perseguida pelos europeus progressistas aos seus próprios países não pode ser um objetivo da América Latina, com métodos diferentes em condições desiguais?

Não: as incomensuráveis violência e dor de nossa história são o resultado de antigas iniqüidades e amarguras caladas, e não uma conspiração tramada a três mil léguas de nossa casa.

Mas muitos líderes e intelectuais europeus têm pensado assim, com a infantilidade de seus antepassados que se esqueceram do proveitoso excesso de sua juventude, como se fosse impossível chegar a outro destino que não o de viver entre a cruz e a espada. Isto, meus amigos, é o tamanho exato de nossa solidão.

Apesar disso, à opressão, ao saque e abandono, respondemos com vida. Nem enchentes nem pragas, nem fome nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após séculos, foram capazes de subjugar a persistente vantagem que a vida tem sobre a morte. Uma vantagem que cresce e acelera: todo ano, há 74 milhões de nascimentos a mais do que mortes, número o suficiente de novas vidas para multiplicar, a cada ano, a população de Nova York sete vezes.

A maioria desses nascimentos ocorre em países de menos recursos – incluindo, claro, os da América Latina. Contraditoriamente, os países mais prósperos se realizaram acumulando poderes de destruição, com força o bastante para aniquilar, num total de cem vezes, não apenas todos os seres humanos que já existiram até hoje, mas também todos os seres vivos que um dia respiraram neste planeta infeliz.

Um dia como hoje, meu mestre William Faulkner disse: “Eu me recuso a aceitar o fim da humanidade”. Não seria digno de mim estar num lugar em que ele esteve se eu não tivesse plena consciência de que a tragédia colossal que ele se recusou a reconhecer, 32 anos atrás, é agora, pela primeira vez desde o começo da humanidade, nada além de uma simples possibilidade científica.

Cara a cara com esta realidade horrenda que pode ter parecido uma mera utopia em toda a existência humana, nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta.

Uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.”

Fonte: http://thomasvconti.com.br/2014/discurso-de-gabriel-garcia-marquez-ao-receber-o-premio-nobel-de-literatura/

Book Review: “Crime e castigo” de Fiódor Dostoiévski

Direito na Literatura

“Crime e Castigo” de Fiódor Dostoiévski é um livro especial. Ele enxerga humanidade em situações que poucas pessoas conseguem enxergar, como no cárcere e na situação de extrema pobreza.

É um exercício de empatia e é uma obra de tamanha sensibilidade que mal consigo exprimir um pouco do que senti durante a leitura. Esse livro é um convite para todo o tipo de gente ler e até mesmo se conhecer como pessoa. Eu me considero muito empática, mas esse livro consegue surpreender a qualquer um.

Dostoiévski conseguiu captar em sua obra a vida miserável da população pobre de São Petersburgo e criar um clássico da literatura universal.

Esse clássico nos conta um pouco sobre Raskólnikov, um jovem estudante de Direito, que vive em situação de extrema miséria. Em um momento de desespero, ele comete um crime brutal e acaba por sofrer as consequências de seus atos.

Assim como em Macbeth, uma das maneiras que ele sofre as consequências é pela sua própria consciência. De uma forma extremamente humana, Dostoiévski faz a gente ver o negacionismo de Raskólnikov e até mesmo questionamentos válidos sobre a estrutura da sociedade.

Surgem os seguintes questionamentos: Qual a diferença na responsabilidade daqueles que matam outros em guerra comparando com um assassino comum? Qual o sentido em prender pessoas por 30 anos em uma cadeia? Como cobrar sanidade das pessoas que vivem no extremo?

O que me chamou atenção foi o rótulo de criminoso. Raskólnikov lida com esse conflito de “ser ou não ser”, pois não é algo que existe, mas sim uma imposição social por uma conduta desviante. E conseguimos sentir isso “na pele” do Raskólnikov.

Ele é uma pessoa complexa como todas nós. Acredito que, acima de tudo, Raskólnikov é extremamente bom. Ele salva crianças de incêndios e vê bondade em todos independente de preconceitos. Isso que torna o exercício de empatia e sensibilidade ainda mais profundo e especial.

Que livro incrível! Tenho muito mais para falar sobre ele… mas vou me segurar aqui e ainda publicarei um vídeo explorando mais o crime e o castigo da obra. Muito obrigada por ler até aqui e espero que você tenha tido vontade de conhecer essa obra-prima da literatura universal.

Reflexões Feministas sobre “Crime e Castigo” de Fiódor Dostoiévski

Direito na Literatura

Caso queira comprar o livro na melhor tradução: Crime e castigo

Queria começar esse texto falando do quanto eu estou apaixonada por “Crime e Castigo” de Fiódor Dostoiévski. É um livro profundo e com uma história que vale muito a pena ser contada. Ela cria um exercício de empatia que todos devemos ter.

Ao ler a primeira parte da obra, não pude evitar de ter um olhar feminista e com maior atenção à situação das mulheres naquele meio. Talvez eu esteja sensibilizada após a leitura de “Anna Karênina” de Tolstói? Sim, mas é impressionante como a vida das mulheres pobres está em contraste com a aristocracia russa. A desigualdade social na Rússia Czarista é gritante e incomoda (assim como a brasileira).

Quero começar falando um pouco da “carteira de identidade amarela”. Esse termo aparece pela primeira vez na obra na página 21 (da edição da Editora 34) e se refere ao documento de identidade, em papel amarelo, utilizado pelas prostitutas na Rússia antes de 1917. O que mais dói é ler a seguinte passagem:

“Quando minha única filha saiu pela primeira vez para tirar a carteira de identidade amarela, eu fui também… (porque a minha filha vive da identidade amarela)…”

Essa frase é dita por Marmieládov, um amigo de Raskólnikov, que furta o dinheiro da própria filha Sônia (que não teve oportunidade de emprego a não ser prostituta) para gastar com o seu vício em bebidas alcóolicas. Neste primeiro momento, conseguimos notar que uma das alternativas mais “viáveis” para uma mulher pobre durante a Rússia Czarista era a prostituição.

Outro ponto interessante é a vulnerabilidade que a população pobre tinha com relação à doenças, em especial, as mulheres devido ao papel de “cuidado” imposto à elas dentro da comunidade. Um exemplo é Catierina Ivánovna, esposa de Marmieládov e que tosse sangue frequentemente.

Falando em Catierina Ivánovna… essa é uma personagem importante nessa anáilse. Ela foi educada em um ambiente aristocrático, mas fugiu da casa dos pais para casar com o seu primeiro marido (um oficial da infantaria), mas que acabou sendo processado e morreu. Neste período sem o marido, entrou na miséria e conheceu Marmieládov, que a fez voltar a ser “dona de casa”.

“Saiba que a minha esposa foi educada em um internato aristocrático, destinado às moças nobres da província, e na festa de formatura dançou de xale para o governador e outras personalidades, e foi recompensada com uma medalha de ouro e um diploma de honra ao mérito. A medalha… bem, a medalha nós vendemos… há muito tempo…hum… o diploma de honra ao mérito ela guarda até hoje no fundo no baú”

Página 23
O próximo exemplo que quero trazer aqui é o de Dúnia, irmã de Raskólnikov. Ela foi governanta na casa do casal Svidrigáilov, pois ela precisava não apenas se sustentar, como dar apoio para a sua mãe também. Nisso, ela entra em uma emboscada, que acredito que deva ser comum da época: ela recebeu um adiantamento de cem rublos para serem descontados do salário a cada mês, segurando-a no trabalho para saldar dívida. Casos parecidos são noticiados todos os dias no Brasil,sendo que o país já foi condenado internacionalmente por não ter agido perante tais práticas

O que é mais triste ainda é ver que ela era vítima de brincadeira de mau gosto pelo Sr. Svidrigáilov (acredito que seja assédio, pois a mãe de Raskólnikov não quis dar detalhes para não enfurecer o filho), que depois resolve fazer uma proposta para fugir com ela. A Sra. Svidrigáilov descobriu tudo e julgou Dúnia como culpada, chegando até a bater na menina.

Mas depois Dúnia conhece um rapaz chamado Lújin que resolve casar com ela. Pela narrativa e pelo entendimento de Raskólnikov, vemos que Dúnia foi praticamente vendida para Lújin, o que enfurece Raskólnikov e compara a situação de sua irmã à prostituição de Sônia. Vemos aí mais um cenário em que Dúnia teve como alternativa (para a sua própria sobrevivência) ser vendida para um rapaz de classe superior.

Perto do fim da parte 1 da obra, encontramos a situação de uma menina, ainda criança, que foi vítima de uma trapaça e é vista perambulando bêbada pela rua. Raskólnikov avista um senhor prestes a abusar da garota (se aproveitando do momento de vulnerabilidade em que ela se encontrava) e decide chamar a polícia para afastar o criminoso.

“Pobre menina!… – disse ele, olhando para o canto vazio do banco. – Vai voltar a si, chorar, depois a mãe ficará sabendo de tudo… Primeiro irá espancá-la, depois açoitá-la, para doer e envergonhar, pode ser até que a expulse de casa”

Página 58

Por fim, quero dar ênfase para a velha viúva. Ela era casada com um funcionário do governo e, possivelmente, não tinha como se sustentar após a morte do marido e resolveu trabalhar com o penhor na criminalidade.

Nós podemos observar que as mulheres sempre estiveram na margem da sociedade, tanto na aristocracia quanto na pobreza. Sem os maridos e sem desempenhar um papel relacionado à “casa” e “cuidados”, elas se encontram sem opção de prosperar, muitas vezes recorrendo ao crime.

O livro não trata apenas do crime e do castigo de Raskólnikov, mas sim de toda a sociedade russa.

Live sobre Direito Civil e Jane Austen

Direito na Literatura

Pessoal, tudo bem com vocês?

Vim aqui dividir com vocês a participação que fiz em uma live com a Jane Austen Sociedade do Brasil. Foi um prazer conversar com especialistas e dividir um pouco dos meus estudos sobre o Direito na época da Jane Austen.

Espero que vocês gostem! Caso queira acessar os vídeos específicos sobre casamento, divórcio, direito de propriedade e adoção, visite o IGTV do @livrosdelei no Instagram.