Book Review: “Ressurreição” de Liev Tolstói

Direito na Literatura

“Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto, eis um novo detento”

Diário de um Detento. Racionais Mc.

Ler “Ressurreição” é nadar contra a maré. É abrir a mente para a perspectiva de milhões de pessoas que hoje estão no cárcere. É sair da zona de conforto e entender mais profundamente como o sistema criminal funciona.

“Ressureição” é um livro atemporal e que, por isso, se encaixa na realidade que temos hoje em pleno século XXI. O livro questiona pontos básicos do Direito Penal, como a finalidade da pena e o próprio sistema carcerário. Por esse motivo, entendo que a melhor maneira de abordar essa resenha é pegar uma citação atual e que segue a mesma proposta da obra.

O Tolstói que conheci em “Ressurreição” (seu último trabalho) é diferente daquele que escreveu “Anna Karênina” e “Guerra e Paz”. O dom da escrita segue o mesmo, mas a abordagem e realidade dos personagens contrasta muito com as outras obras, pois o foco é o próprio sistema criminal. Foi incrível conhecer essa faceta de Tolstói e ler esse livro que se tornou um dos meu favoritos da vida.

O livro é baseado em no caso real de um rapaz nobre que participa como jurado no julgamento do crime de uma antiga camponesa conhecida por ele. Por diversos motivos, ele se sente culpado pela vida que ela estava levando (sem spoilers) e, além disso, a mulher também acaba sendo presa injustamente. Nesse sentido, o rapaz busca meios de redimir seus pecados e ter uma vida limpa e justa. Ele nem sempre busca a maneira mais correta, e isso é genial porque permite que ninguém seja 100% bom ou mau o tempo inteiro (nem mesmo os outros personagens).

No fim, não se sabe ao certo de quem é a ressurreição. Mas o sentido bíblico da palavra é altamente utilizado e tem diversas referências – como os principais acontecimentos ocorrem perto do período da Quaresma e até mesmo partes que recordam Mt 25, 36.

As reflexões que o personagem principal faz não são apenas profundas, como também necessárias. O livro é essencial para as pessoas compreenderem a realidade social brasileira, na medida em que o Brasil é o país que mais prende pessoas no mundo e possui um sistema criminal/prisional problemático. Eu acredito que todo mundo deveria ler o livro, independente se é operador do Direito ou não. É uma lição de empatia e aguça o sentido crítico e filosófico.

A leitura me lembrou outras obras igualmente importantes e críticas, como o filme “13a emenda” (disponível na Netflix) e os livros abaixo:

Os links acima são afiliados.

Além disso, tenho um vídeo que mostra um pouco sobre as reflexões feitas pelo protagonista (minuto 4:37). O vídeo é sobre o universo de Harry Potter, mas segue a mesma linha proposta pelo protagonista de “Ressurreição”:

Book Review: “Middlemarch” de George Eliot

Resenhas

“People are almost always better than their neighbors think they are.”

“Middlemarch, A Study of Provincial Life” é uma obra da autora britânica Mary Anne Evans, que escreveu como George Eliot. O livro apareceu pela primeira vez, no formato de oito volumes, de 1871 a 1872. A obra é situada em Middlemarch, uma cidade fictícia inglesa de Midland, de 1829 a 1832, e retrata a realidade dos moradores daquele local (casamentos, projetos, mudanças sociais e políticas, etc.).

Agora viajar e conhecer a cidade de Middlemarch:

Meu primeiro conselho para essa viagem é se preparar para imprevistos. Middlemarch é um local em que não se deve criar expectativas, pois seu planos possivelmente darão errado. Assim como o nosso ilustre narrador disse “we mortals, men and women, devour many a disappointment between breakfast and dinner-time”. Essa sensação de “dar tudo errado” permite com que os personagens se desenvolvam brilhantemente e desafia o leitor. Isso não é fácil, mas estamos em boas mãos com Eliot, que faz esse desafio ser uma experiência enriquecedora.

Parte desse mérito se dá pelo fato dos personagens serem humanos: ninguém é 100% bom e nem 100% mau. As heroínas e os heróis falham em algum momento, ainda que depois tudo ocorra bem (ou não rs). Penso que a sensação de decepção ocorre por conta da grande ambição de alguns moradores de Middlemarch. É aquilo: melhor criar unicórnios do que expectativas, não é mesmo? rs

Queria escrever sobre alguns personagens centrais, como Dorothea Brooke, Tertius Lydgate, Caleb Garth e Nicholas Bulstrode. Mas acho que é mais interessante falar da obra como uma mentalidade coletiva, pois a cidade não se restringe apenas aos personagens e, muitas vezes, impactam diretamente os objetivos deles.

O clima de Middlemarch é de mudança e pressão social. A origem das famílias conta muito para a reputação na sociedade. Então, se a sua origem não é conhecida, não recomendo a viagem para lá.

Além disso, Middlemarch se passa durante um período tumultuado na história inglesa, quando mudanças políticas, científicas e a própria industrialização causaram um grande impacto no país. Os moradores de Middlemarch se opõem inflexivelmente à reforma política e científica, tanto pelo medo da mudança quanto pelo apego a modos de vida antigos e disfuncionais. Essa oposição intensifica a impressão de que eles são uma comunidade retrógrada, desconfiada de mudança e progresso – mesmo que isso possa beneficiá-los.

Senti que Middlemarch foi uma ancorada. Um livro que coloca os nossos pés no chão e faz a gente sentir que nem sempre a vida é linda e que nem sempre tudo é aquilo que sonhamos. Foi um livro divertido e, ao mesmo tempo, melancólico.

Se quiser ver a minha análise sobre Direito e Middlemarch (Livro V), assista o vídeo:

Book Review: “Klara e o Sol” de Kazuo Ishiguro

Resenhas

“People saying how you’ve become too clever. There’re afraid because they can’t follow what’s going on inside any more. They can see what you do. They accept that your decisions, your recommendations, are sound and dependable, almost always correct. But they don’t like not knowing how you arrive at them. That’s where it comes from, this backlash, this prejudice.”
Klara and the Sun (Kazuo Ishiguro – p. 328).

A observação com uma atenção direcionada faz parte da maneira em que aprendemos as coisas no dia-a-dia. E, na medida em que imprimimos os nossos valores em nossas criações, os robôs humanoides também teriam essa capacidade. Isso é o que acontece com Klara, grande protagonista da obra “Klara e o Sol” de Ishiguro.

Essa obra, para mim, representa o quanto colocamos o melhor de nós em nossas criações. Klara é uma robô criada para diminuir a solidão de crianças abastadas em um futuro distópico. Há uma clara separação social e biológica entre as pessoas, mas isso deixarei em “aberto” para vocês ir descobrindo no decorrer da leitura (mas fica a dica!).

A Klara é a combinação do que há de melhor no ser humano. Ela tem um amor, carinho e atenção que só os mais nobres poderiam demonstrar. E, por isso, ela é também diferente dos outros robôs. Ela pensa que observa muito bem os humanos, mas eu discordo. Acredito que ela observa os humanos dentro de um ideal e, com base nele, interpreta o que acontece. Caso ela puramente observasse os humanos e aprendessem com eles, talvez ela se tornasse um robô da Microsoft ou um pouco mais como os outros robôs de sua loja.

Mas ver o mundo pelos olhos da Klara é uma experiência muito boa, porque permite com que a gente faça uma autorreflexão. O livro é de altíssima sensibilidade e tem altos e baixos nos acontecimentos na vida de seus personagens. Ishiguro consegue mudar o clímax do livro de “meigo” (por assim dizer rs) para assustador de maneira brilhante. A escrita é linda e muito bem trabalhada.

Não tenho o costume de ler livros sobre robôs ou futuros distópicos, mas esse foi muito bom e me fez querer conhecer muitos outros. Recomendo esse livros para todes!

Direito e Literatura: Middlemarch, Testamentos e a “Mão Morta”

Direito na Literatura

Sem spoilers!

Quem leu a obra “Middlemarch” sabe que os mortos continuam influenciando a vida dos vivos por meio de seus testamentos. Esses documentos, além de impactarem a vida de diversos personagens, também são um instrumento jurídico, e acho importante (e legal) dividir um pouco sobre eles na perspectiva da Inglaterra retratada por George Eliot.

Enquanto desenvolvia a obra entre 1º de novembro e 17 de dezembro de 1869, George Eliot leu “Ancient Law: its connection with the early history of society and its relation to modern ideas” de Henry Maine. Nesta obra, ela teve contato com leis romanas que explicavam as raízes dos princípios da lei inglesa. Com base nessa leitura, ela incluiu algumas questões jurídicas em Middlemarch, em especial sobre testamentos.

Na Inglaterra Vitoriana

Na Inglaterra vitoriana, existia um enorme interesse nos testamentos, pois esses documentos poderiam conter fofocas, como declarações amargas por parte do falecido e até mesmo desaprovações. A obsessão por testamentos pode ter como influência esses aspectos incomuns que o falecido deixava no documento, além de também não existir a obrigatoriedade de passar propriedades aos filhos e cônjuges. Um caso muito interessante é o de Sir Thomas May de Londres, que em 1887 deixou um xelim para sua esposa e filha, enquanto legava uma soma anual de £100 para seu empregado (uma quantia grande para a época!).

Ainda que atiçasse a curiosidade alheia, os testamentos não eram comuns. Em 1850, apenas cerca de 15% dos adultos que morreram deixaram riqueza suficiente para fazer da herança um assunto que valesse a pena; a maioria das pessoas morria sem nada ou estavam endividadas.

Mesmo entre aqueles que tinham algo para deixar, as desigualdades eram gritantes. Em 1911, 90% das propriedades eram avaliadas em menos de £1.000 – coletivamente, elas representavam apenas 10% da riqueza total passada na morte. No outro extremo do espectro, apenas 0,1% das propriedades estavam avaliadas em mais de £50.000, embora coletivamente essas propriedades representassem 38% da riqueza total.

Os fundos (trusts) eram uma ferramenta comum para garantir que as crianças se beneficiassem, com o tempo, da riqueza deixada pelos pais. Na morte de uma pessoa com propriedades, a maior parte de sua riqueza passaria para administradores nomeados. Quando a cônjuge do proprietário falecido morria, ou quando os filhos atingiam a idade adulta, os bens mantidos em confiança eram divididos ou vendidos pelos curadores e compartilhados, geralmente igualmente, entre todos os filhos sobreviventes.

Mão Morta e Entidades Religiosas

Além dessa curiosa sobre o período vitoriano, há algo interessante em um dos testamentos que aparecem em Middlemarch – que é a famosa “mão morta”. Para entender o que é essa “mão morta”, é preciso voltar um pouco no tempo:

Na Inglaterra medieval, a propriedade do inquilino de um feudo estava sempre sujeita à vontade de seu Senhor. Se as circunstâncias legais daquele inquilino mudassem de alguma forma – se ele se casasse, por exemplo, ou morresse, ou cometesse um crime – então aquela propriedade era revertida e o Senhor poderia escolher com qual feudo substituí-la. No entanto, essa liberdade era negada quando os inquilinos doavam a propriedade a uma entidade religiosa – pois a Igreja é uma instituição que não morria, não se casava ou mudava de qualquer forma seu status legal em benefício do Senhor, e o arrendatário era livre para mantê-las sob a égide do corpo religioso.

Os feudos também geravam impostos para o rei, principalmente sobre a concessão ou herança de uma propriedade. Se um imóvel se tornasse propriedade de uma entidade religiosa que nunca poderia morrer, esses impostos nunca seriam devidos. Era semelhante às propriedades pertencentes aos mortos, daí o termo “Mão morta” – mort main.

Uma vez que a terra passou para o controle da Igreja, ela nunca poderia ser abandonada. Como a Igreja nunca morreria, a terra nunca poderia ser herdada por morte (portanto, nenhuma taxa poderia ser cobrada pela entrada do herdeiro), nem poderia ser roubada ao senhor (perdida por falta de herdeiro). Isso veio a ser conhecido como a “mão morta” (francês: mortmain) – a Igreja (uma entidade não viva) representava essa mão morta, ou a mão era a do doador morto, que na verdade ainda controlava a terra como se vivo estivesse. Assim, as ações de homens que morreram gerações antes continuaram a controlar suas antigas terras (assim como acontece com um personagem de Middlemarch que morreu e, ainda assim, controla a sua propriedade).

Os Estatutos de Mortmain visavam restabelecer a proibição de doar terras à Igreja com o objetivo de evitar serviços feudais, uma proibição que se originou na Carta Magna de 1215. Os Estatutos de Mortmain previam que nenhuma propriedade poderia ser concedida a uma corporação sem o consentimento real e de seu Senhorio.

Pela Lei de 1279, que é uma parte dos Estatutos de Mortmain, nenhuma pessoa religiosa tinha permissão para adquirir terras. Se o fizessem, a terra era confiscada ao senhor feudal imediato, que teria um breve período para confiscar a propriedade. Se não o fizesse, o senhor logo acima dele (na hierarquia feudal) teria uma oportunidade semelhante.

No entanto, estes Estatutos revelaram-se ineficazes na prática. Pois se o suserano estivesse disposto, a terra ainda poderia ser doada a uma casa religiosa com sua cumplicidade, ou seja, por sua inação. E licenças do rei para adquirir terras em mortmain foram facilmente obtidas naqueles anos, pois Henrique III era simpatizante dos corpos religiosos durante seu longo reinado.

As leis referentes ao mort main existiram na Inglaterra desde o século XIII até que foram finalmente revogadas em 1960.

Fontes: Professor Alastair Owens: https://www.qmul.ac.uk/geog/news/2017/items/keeping-it-in-the-family-inheritance-in-victorian-and-edwardian-britain.html I David Clifford: https://digitalcommons.unl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1267&context=ger I Pollock and Maitland, History of English Law, Vol 1., p. 329, Cambridge University Press, 1968

Book Review: “A inquilina de Wildfell Hall” de Anne Brontë

Direito na Literatura, Resenhas

Que livro misterioso foi esse! Anne Brontë nos presenteou com essa obra-prima única e cheia de surpresas. O livro foi publicado em 1848 sob o pseudônimo de Acton Bell e foi um sucesso instantâneo! mas após a morte de Anne, sua irmã Charlotte impediu sua republicação na Inglaterra até 1854.

Tudo estava claro e ordenado até a chegada de uma nova vizinha… Helen Graham, uma jovem viúva que se muda para Wildfell Hall (uma mansão elizabetana) com o seu filho e uma empregada. Pouco se sabe sobre Helen… na verdade, os vizinhos sabem praticamente nada sobre ela. E quanto mais eles tentam descobrir, menos ela revela sobre si, gerando uma insatisfação coletiva e o desejo por fofocas.

As fofocas começam a circular por toda a vizinhança, mas não convencem Gilbert Markham, um jovem fazendeiro da região. Gilbert decide descobrir a verdade sobre essa mulher tão curiosa e acaba se tornando o narrador perfeito!

O livro é escrito no formato de cartas, que Gilbert envia para o seu amigo sobre suas descobertas. Mas o que deixa Helen ser tão misteriosa? Isso só poderá ser respondido ao ler o livro, mas o que choca a população é o quanto Helen quebra as normas sociais de sua época (sua forma de sustento, forma de educar o seu filho, visão sobre casamento, etc).

Até aqui já deu para perceber que o livro trata sobre diversos assuntos e, por isso, acho que é tão profundo e completo. Anne navegou a fundo nas questões de sua época e no que realmente significava ser uma mulher do século XVIII, pois dá para “sentir na pele” muitas das questões que existem até hoje na nossa sociedade (dependência química, violência doméstica, casamento, maternidade, direito das mulheres, etc).

A experiência de ter lido tudo isso na perspectiva de uma mulher da época deixou tudo ainda mais latente e me sinto grata por ter tido a oportunidade de ter lido essa obra de Anne Brontë e o contato com a sua escrita única e envolvente. É completamente diferente do que vemos com outras obras de época e muito mais paupável… muitos risos, apertos, lágrimas e emoção!

É muito cômodo pensarmos que as mulheres não tinham direitos na época e que tudo era “pacífico”… Essa não é a verdade e Anne Brontë desmistifica isso nos mostrando como as mulheres resistiam (cada uma à sua maneira). Lembrando que até a aprovação do Married Women’s Property Act em 1870, uma esposa não tinha existência independente sob a lei inglesa e, portanto, nenhum direito de possuir propriedade ou celebrar contratos separadamente de seu marido, ou processar por divórcio, ou pelo controle e custódia de seus filhos.

Eu gostaria de escrever realmente TUDO o que senti com esse livro, mas quero que mais pessoas leiam e se surpreendam como eu na leitura. Esse livro tem um espaço especial no meu coração e espero que ele também ganhe um no de você que está lendo esse texto. Li o livro em inglês e, para praticar o idioma, acompanhei a leitura com o audiolivro abaixo:

Caso queira conhecer mais sobre o Direito Civil da época, veja o vídeo abaixo ou acesse a página do Livros de Lei no Instagram ou no Spotify.

Onde comprar livros estrangeiros?

Direito na Literatura

Já que estamos no clima de Prime Day, acho interessante dar uma olhada em outros sites também para a compra de livros estrangeiros. Mas por que livros estrangeiros? Eu gosto muito de aprender idiomas e a leitura é fundamental para a minha forma de estudo. Além da minha língua materna, falo também inglês, espanhol e alemão – então as recomendações de sites são feitas com base na minha experiência com esses idiomas.

Amazon: a Amazon Brasil tem muitas opções e preços bastante competitivos (já em reais) para livros em inglês. A entrega costuma a ser super rápida (especialmente se você é Prime), então é sempre a minha primeira opção na busca de uma nova compra. O defeito é que o site é totalmente fora de mão para espanhol e alemão: sem opções e preços caríssimos. 

Waterstones.com: é uma loja britânica com muitas opções. O formato desse site é ótimo (especialmente pq da para rastrear a sua compra)! Recomendo para compras em inglês, espanhol e alemão. O preço está em libras, então precisa ficar com a calculadora perto 👀 o frete é em torno de £12.50 e o prazo pode variar de 7-10 dias úteis. Pode estar sujeito a impostos de importação quando chegar no Brasil. 

Book Depository: esse também é um site britânico que vende uma quantidade enorme de livros do mundo todo. O frete é de graça, mas a entrega não é rastreável e demora para chegar (10-25 dias úteis). É excelente para comprar livros que não tenham na Amazon Brasil, mas o preço não é tão competitivo. 

Todos os links deste post são afiliados.

Book Review: “Pedro Páramo” de Juan Rulfo

Resenhas

A obra “Pedro Páramo” é uma viagem sem volta para um universo mágico mexicano, onde conhecemos a pequena e quente cidade de Comala. Lá acompanhamos a busca de um jovem, Juan Preciado, por seu pai, Pedro Páramo.

Ao chegar em Comala, Juan percebe que todos os moradores da cidade possuem alguma relação com o seu pai. Mas, ao percorrer esse lugar, elementos mágicos se confundem com o real e o leitor se vê mergulhado em uma realidade única em que não há temporalidade e todos os personagens (ainda que estejam ligados) são contraditórios entre si.

Existe um elemento específico que liga os personagens, e que não é apenas o fato de todos conhecerem Pedro Páramo, mas o motivo de estarem condenados a viver em Comala. Esse elemento é o ponto mais interessante da obra, na minha opinião, porque surpreende o leitor e explica o motivo do mergulho – mas que não revelarei aqui, porque não quero estragar a experiência e dar spoilers. Mas fica o mistério!

A estrutura do livro é interessantíssima, pois não existe uma divisão entre os capítulos e ele brinca com a nossa sensação de real e imaginário. Também não há uma sequência temporal dos acontecimentos para os personagens e tampouco para nós, como leitores. Além disso, os acontecimentos não são narrados, o que faz com a gente viva a história da cidade e seus habitantes como se estivéssemos no exato momento em que tudo ocorre e na perspectiva de cada um.

Explico: cada personagem conta a sua história no momento em que ela acontece. Assim, conseguimos viajar no tempo com os personagens, que se contradizem e não são confiáveis.

É uma obra divertida e crítica. Dá para sentir a solidão latino-americana (tão bem explorada por Gabo) de maneira latente e, ao mesmo, se divertir com a realidade única de Comala – uma cidade de pedra, assim como Pedro 😉 

Foi um dos melhores livros que li na vida e espero que você (que chegou até aqui na resenha) se interesse e leia também. É especial, lindo e eterno. Eu o li em espanhol e, para praticar o idioma, recomendo o audiolivro abaixo.

Caso tenha dúvidas de vocabulário, devido ao regionalismo da obra, indico acessar: Página Oficial da RAE, Dicionário de Americanismos e o Dicionário de Espanhol Mexicano.

Book Review: “Ao Farol” de Virgínia Woolf

Resenhas

Ler Virgínia é sempre um desafio para mim e para muitas das pessoas que me acompanham. Para mim é muito difícil compreender e ler um livro dela logo no primeiro contato. Nesse primeiro contato com obras experimentais, já cheguei a ser uma pessoa que “não lia Virgínia Woolf” (o que é totalmente absurdo visto quem sou hoje e como Woolf impacta a minha vida diariamente).

Mas tudo isso mudou após insistir na leitura de “Mrs. Dalloway”. Agora sou apaixonada pelo trabalho de Virgínia e compreendo que preciso de tempo para realmente me engajar na leitura (dar um “click”, na verdade). Geralmente preciso tentar umas duas vezes antes de conseguir mergulhar nas profundidades que Virgínia propõe em suas obras(-primas).

Sinto que “mergulhar” é a palavra certa quando lemos Woolf. Porque me sinto mergulhada em um mar abstrato em aquarela, cheio de cores, cenários e personagens. O narrador sempre tenta me puxar e indicar o caminho para seguir uma certa linearidade, que de linear não tem nada.

Esse mergulho aconteceu de forma bastante intensa durante a leitura de “Ao farol”, que me apresentou diversos desafios. Aliás, a leitura conseguiu fluir para mim na terceira tentativa e também com a ajuda de um audiobook (narrado pela Nicole Kidman, que faz um sotaque britânico horroroso, mas interpreta brilhantemente).

O livro conta sobre as duas visitas que a família Ramsay faz à Escócia, a primeira em 1910 e a segunda em 1920. Não personagens centrais e a narrativa vai navegando entre os pensamentos e percepções de cada membro da família e de seus conhecidos. Assim, Woolf conseguiu explorar as complexidades e ambiguidades do pensamento de cada membro da família – além de nos mostrar as percepções muito individuais que cada um tem do outro.

“Ao Farol” é uma obra inspirada na vida real de Woolf, pois sua família visitava o litoral, onde seu pai alugava um local para ficar com a família. Isso tudo até a morte de sua mãe, que fez com o que o pai de Woolf entrasse em depressão.

Grande parte da genialidade do livro, na minha opinião, é a forma em que ele é escrito – porque não existem diálogos “tradicionais” como vemos nos livros em geral. Todos os acontecimentos ocorrem dentro da mente dos personagens (em conformidade com o movimento modernista que Virgínia fez parte). O livro é curtinho, mas exige bastante tempo para ler e entender (vale várias releituras, por sinal).

Há algumas cenas que ficaram na minha cabeça após a leitura, creio que são as minhas favoritas. Uma delas é quando o Mr. e a Mrs. Ramsay saem para conversar após um jantar com os amigos, porque Woolf consegue intercalar os pensamentos que um tem do outro enquanto os dois conversam. O que eles pensam não necessariamente reflete o que eles dizem ou como eles se posicionam de fato, o que deixa tudo ainda mais factível e interessante para o leitor.

O livro não tem eventos alucinantes, por assim dizer. A verdadeira aventura acontece na complexidade do pensamento de seus personagens. Aliás, os eventos importantes e dramáticos do livro acontecem de maneira leve.

É incrível como Woolf consegue captar a ideia de “não dá para amar alguém 100% do tempo” nos pensamentos de seus personagens. Isso está refletido em outra cena que ficou na minha cabeça, que é a de Lily Briscoe pintando um quadro e como ela lida com um outro personagem (sem spoilers).

A obra é genial e trata sobre diversos assuntos, sendo os principais (para mim) a (i) complexidade da afetividade entre as pessoas; (ii) posição da mulher na sociedade/família; e a (iii) indiferença na qual o tempo passa com relação aos acontecimentos da vida. Eu queria muito falar sobre esse segundo assunto, mas não consegui fazer sem revelar spoilers e preferi não publicar aqui.

Eu super recomendo esse carrossel de personagens e pensamentos que é “Ao Farol”. É uma obra complexa, mas igualmente linda e cheio de significados. Vale ser lida diversas vezes.

Amizade Literária: “O conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas

Resenhas

Uma amizade que começa em meio ao desespero e na solidão. Quando os olhos se acostumam com o escuro e até mesmo a sua própria voz assusta… Foi nesse contexto que surge o meu personagem predileto da obra “O Conde de Monte Cristo”.

O abade Faria foi um personagem que instigou a minha criatividade e que ainda me faz sentir emocionada ao lembrar de sua trajetória no livro. Toda vez que ele aparecia (ou era mencionado), as lágrimas de emoção e admiração surgiam nos meus olhos… precisei ler 2x (pelo menos) toda vez que ele apareceu no livro.

Ele é uma figura que levarei comigo para a vida. Ele é um gênio e sinto como se fosse alguém que eu tivesse conhecido no trabalho ou na roda de amigos. Sinto um carinho muito grande por ele e me encanta saber que ele foi baseado em uma pessoa real: o nome do moço era Abade Torri.

Me peguei imaginando várias possibilidades para ele dentro do universo do livro, então a sensação de “e se…?” foi a minha companheira nessa leitura. Acho inevitável não imagina-lo em diversas situações… até porque ele foi decisivo no livro. 

Assim como no livro, para mim, ele é a luz que aparece no escuro da solidão e da tristeza. “Luz” tanto no sentido iluminista, pois é a razão que nos coloca no chão, quanto de conforto em um ambiente escuro e hostil.

Queria muito me estender e falar sobre cada ponto que admiro nele… mas vou apenas recomendar que leiam a obra-prima que é “O conde de Monte Cristo” e espero que se encantem com o personagem assim como eu ❤️

“A solidão da América Latina” por Gabriel García Márquez

Direito na Literatura

O discurso está transcrito após o vídeo 🙂

Em 1982, o escritor Gabriel García Márquez foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de suas obras, incluindo a célere “Cem anos de solidão”. Segundo a Academia, Gabo foi premiado “pelos seus romances e contos, em que o fantástico e o real se combinam num mundo densamente composto pela imaginação, refletindo a vida e os conflitos de um continente”.

A ida de Gabo para receber o prêmio na Suécia foi um evento icônico. Gabo celebrou com músicos latino-americanos e bastante festa. Além disso, foi a oportunidade de fazer um dos discursos mais icônicos de todos (e o meu preferido de toda a vida!).

O discurso é um texto de esperança e que descreve o cenário social na América Latina. A solidão da América Latina existe devido a sua especificidade no mundo… uma região em que não há liberdade para escolher a maneira em que se morre, mas que é morada de um povo alegre e sonhador. O discurso permitiu que os outros países (em especial os do norte) olhassem para a América Latina e entendessem o motivo dessa solidão imposta.

Conteúdo do discurso:

“Antonio Pigafetta, navegador florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem em volta do mundo, escreveu, na ocasião de sua passagem pelas terras do sul de nossa América, um relato minuciosamente apurado, mas que na verdade parece mais um delírio fantasioso.

Nessa viagem, ele diz que viu porcos com umbigos nas ancas, pássaros sem garras cujas fêmeas botavam os ovos nas costas de seus parceiros, e ainda outros, lembrando pelicanos deslinguados, com bicos feito colheres.

Ele disse ter visto uma criatura desengonçada, com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo e pernas de veado, que relinchava como cavalo. Descreveu como o primeiro nativo encontrado na Patagônia se olhou no espelho, e em seguida, o impassível gigante, perdeu a razão, aterrorizado com sua própria imagem.

Este curto e fascinante livro, que já naquela época continha as sementes de nossos atuais romances, é sem dúvida o mais pungente relato da realidade nossa daquele tempo.

Os cronistas das Índias nos deixou outros incontáveis relatos. Eldorado, nossa terra ilusória e tão avidamente procurada, apareceu em numerosos mapas durante anos, deslocando-se de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos.

Em sua procura pela fonte da eterna juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou o norte do México por oito anos, numa iludida expedição cujos membros devoraram uns aos outros e, dos seiscentos que foram, apenas cinco voltaram.

Um dos muitos mistérios inimagináveis daquela época é o das onze mil mulas, cada uma carregando cinqüenta quilos de ouro, que um dia deixaram Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Depois disso, no tempo das colônias, galinhas vendidas em Cartagena de Índias eram criadas em terrenos de aluviões e em suas moelas eram encontradas pequenas pepitas de ouro.

A cobiça de ouro de nossos fundadores nos perseguiu até recentemente. No fim do último século [XIX], uma missão alemã, indicada para estudar a construção de uma ferrovia inter-oceânica, através do istmo do Panamá, concluiu que o projeto era viável com uma condição: que os trilhos não fossem feitos com aço, que era raro na região, mas com ouro.

Nossa independência da dominação dos espanhóis não nos pôs fora do alcance da loucura. O general Antonio López de Santana, três vezes ditador do México, providenciou um magnífico funeral para a perna direita que ele perdera na chamada Guerra dos Pastéis. O general Gabriel García Moreno governou o Equador por 16 anos como um monarca absoluto; em seu velório, o corpo ficou sentado na cadeira presidencial, vestido com o uniforme completo e decorado com uma camada protetora de medalhas.

O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teosófico de El Salvador, que teve 30 mil camponeses aniquilados num massacre selvagem, inventou um pêndulo para detectar veneno em sua comida, e mantinha as lâmpadas das ruas envolvidas em papel vermelho para vencer uma epidemia de escarlatina. A estátua do general Francisco Morazán, na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade do marechal Ney, comprada num depósito de esculturas de segunda mão em Paris.

Onze anos atrás [1971], o chileno Pablo Neruda, um dos brilhantes poetas de nosso tempo, iluminou este público com suas palavras. Desde então, os europeus de boa vontade – e às vezes aqueles de má vontade também – têm sido arrebatados, com cada vez mais força, pelas novidades fantásticas da América Latina, esse reino sem fronteiras de homens alucinados e mulheres históricas, cuja infinita obstinação se confunde com a lenda.

Não temos tido sequer um minuto de sossego. Um prometéico presidente, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho; e dois suspeitos acidentes de avião, ainda por explicar, abreviaram a vida de um grande presidente e a de um militar democrata que tinha ressuscitado a dignidade de seu povo.

Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares; surgiu um diabólico ditador que está realizando em nome de Deus o primeiro etnocídio da América Latina de nosso tempo. Nesse ínterim, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de completar um ano de vida – mais do que as que nasceram na Europa desde 1970.

Os desaparecidos pela repressão chegam a quase 220 mil. É como se ninguém soubesse onde foi parar a população inteira de Uppsala. Várias mulheres presas grávidas deram à luz nas prisões argentinas, e ainda ninguém sabe do paradeiro e da identidade de seus filhos, que foram furtivamente adotados ou enviados para orfanatos por ordem das autoridades militares.

Porque tentaram mudar esta situação, quase 200 mil homens e mulheres morreram em todo o continente, e mais de cem mil perderam suas vidas em três pequenos e malfadados países da América Central: Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, seria o equivalente a um milhão e seiscentos mil mortes violentas em quatro anos.

Um milhão de pessoas abandonaram o Chile, um país com tradição de hospitalidade – ou seja, doze por cento da população. O Uruguai, pequenina nação de dois milhões e meio de habitantes, que se considerava o país mais civilizado do continente, perdeu para o exílio um em cada cinco de seus cidadãos.

Desde 1979, a guerra civil de El Salvador vem produzindo quase um refugiado a cada vinte minutos. O país que se poderia criar com todos os exilados e emigrantes forçados da América Latina teria uma população maior que a da Noruega.

Ouso dizer que é esta desproporcional realidade, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso.

Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão.

E se estas dificuldades, cuja essência compartilhamos, nos atrasa, é compreensível que os talentos racionais desta parte do mundo, exaltados na contemplação de sua própria cultura, se encontrem sem meios apropriados de nos interpretar.

É simplesmente natural que eles insistam em nos medir com o mesmo bastão que medem a si mesmos, se esquecendo de que as intempéries da vida não são as mesmas para todos, e que a busca pela nossa própria identidade é tão árdua e sangrenta para nós quanto foi para eles.

A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários.

A venerável Europa talvez pudesse ser mais perceptiva se tentasse nos ver em seu próprio passado. Se ela recordasse simplesmente que Londres levou 300 anos para construir seu primeiro muro, e mais 300 para ter um bispo; que Roma labutou numa penumbra de incertezas por 20 séculos, até que um rei etrusco a fizesse entrar para a história; e que a pacífica Suíça de hoje, que nos deleita com seus leves queijos e simpáticos relógios, derramou o sangue da Europa como soldados mercenários, no final do século XVI. Mesmo no alto da Renascença, 12 mil lansquenetes pagos pelo exército imperial saqueou e devastou Roma e trespassou oito mil de seus habitantes na espada.

Não quero incorporar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de unir um casto norte a um sul apaixonado foram exaltados aqui, há 53 anos, por Thomas Mann. Mas realmente acredito que aqueles europeus esclarecidos que lutaram, inclusive aqui, por um lar mais justo e humano, pudesse nos ajudar muito melhor se reconsiderassem sua maneira der nos ver.

A solidariedade com nossos sonhos não vai nos fazer menos solitários, enquanto isso não for traduzido em atos concretos de apoio legítimo às pessoas que aceitam a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.

A América Latina não quer, nem tem qualquer razão para querer, ser massa de manobra sem vontade própria; nem é meramente um pensamento desejoso que sua busca por independência e originalidade deva se tornar uma aspiração do Ocidente. No entanto, a expansão marítima que estreitou essa distância entre nossas Américas e a Europa parece, ao contrário, ter acentuado nosso distanciamento cultural.

Por que a originalidade nos foi agraciada tão prontamente na literatura e tão desconfiadamente nos foi negada em nossas difíceis tentativas de mudanças sociais? Por que pensar que a justiça social perseguida pelos europeus progressistas aos seus próprios países não pode ser um objetivo da América Latina, com métodos diferentes em condições desiguais?

Não: as incomensuráveis violência e dor de nossa história são o resultado de antigas iniqüidades e amarguras caladas, e não uma conspiração tramada a três mil léguas de nossa casa.

Mas muitos líderes e intelectuais europeus têm pensado assim, com a infantilidade de seus antepassados que se esqueceram do proveitoso excesso de sua juventude, como se fosse impossível chegar a outro destino que não o de viver entre a cruz e a espada. Isto, meus amigos, é o tamanho exato de nossa solidão.

Apesar disso, à opressão, ao saque e abandono, respondemos com vida. Nem enchentes nem pragas, nem fome nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após séculos, foram capazes de subjugar a persistente vantagem que a vida tem sobre a morte. Uma vantagem que cresce e acelera: todo ano, há 74 milhões de nascimentos a mais do que mortes, número o suficiente de novas vidas para multiplicar, a cada ano, a população de Nova York sete vezes.

A maioria desses nascimentos ocorre em países de menos recursos – incluindo, claro, os da América Latina. Contraditoriamente, os países mais prósperos se realizaram acumulando poderes de destruição, com força o bastante para aniquilar, num total de cem vezes, não apenas todos os seres humanos que já existiram até hoje, mas também todos os seres vivos que um dia respiraram neste planeta infeliz.

Um dia como hoje, meu mestre William Faulkner disse: “Eu me recuso a aceitar o fim da humanidade”. Não seria digno de mim estar num lugar em que ele esteve se eu não tivesse plena consciência de que a tragédia colossal que ele se recusou a reconhecer, 32 anos atrás, é agora, pela primeira vez desde o começo da humanidade, nada além de uma simples possibilidade científica.

Cara a cara com esta realidade horrenda que pode ter parecido uma mera utopia em toda a existência humana, nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta.

Uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.”

Fonte: http://thomasvconti.com.br/2014/discurso-de-gabriel-garcia-marquez-ao-receber-o-premio-nobel-de-literatura/