Há livros que não apenas informam… eles nos acompanham! Career and Family é um desses. Escrito por Claudia Goldin, vencedora do Nobel, este é um livro essencial para qualquer mulher com diploma universitário.
Goldin traça o percurso das mulheres ao longo dos últimos 100 anos, da entrada tímida nas universidades até o avanço no mercado de trabalho. A leitura revela, com dados precisos e histórias delicadamente entrelaçadas, como a igualdade formal de oportunidades ainda esbarra em desigualdades silenciosas. A principal delas? O tempo.
Vivemos em uma era em que tempo é, literalmente, dinheiro. E ainda somos ensinadas (mesmo que de forma sutil) que cabe a nós moldar o nosso tempo em função dos outros (filhos e familiares).
Flexibilizá-lo, dobrá-lo, sacrificá-lo. Isso tem um preço. A diferença salarial entre homens e mulheres persiste. Não porque somos menos capazes ou menos ambiciosas, mas porque o mundo ainda espera que sejamos as cuidadoras. E quando cuidamos do mundo, quem cuida da nossa trajetória profissional?
O livro não aponta dedos. Ele não condena escolhas, nem romantiza dificuldades. Ele apenas nos oferece uma lente limpa para ver o que está acontecendo. Goldin fala, por exemplo, da indústria farmacêutica como um modelo mais viável para mulheres em setores tão exigentes quanto o jurídico ou o financeiro (algo que, para mim, foi especialmente revelador). Como advogada, fiquei chocada ao ver o Direito entre as áreas com maior desigualdade de salários por tempo de dedicação. Mas também senti um certo alívio ao saber que há outras formas de estruturar o trabalho e que mudanças são possíveis.
Ao longo da leitura, voltei muitas vezes à minha própria trajetória. Gostaria de ter lido este livro há mais tempo, talvez ainda na faculdade. Ele teria me ajudado a entender que nem tudo depende de esforço individual. Que há padrões históricos que se repetem. E que, embora por vezes pareça tarde para recomeçar, estamos sempre a tempo. O tempo, afinal, nunca é só nosso… ele é também um fio que nos liga a outras mulheres, que vieram antes e que seguem conosco, como parte de uma mesma onda.
É um livro sobre trabalho. Mas, no fundo, é um livro sobre escolha. Sobre liberdade. Sobre pertencimento. E sobre o poder de olhar para o passado para entender o presente e desenhar um futuro mais justo.
Recomendo muito essa leitura. E desejo, de verdade, que mais mulheres falem sobre ele. Porque há livros que nos transformam. Mas há também aqueles que, silenciosamente, nos acolhem.
Vivemos à beira de uma transformação radical. The Coming Wave, de Mustafa Suleyman, é um convite urgente (e essencial) à reflexão sobre o impacto iminente das tecnologias que estão prestes a redefinir o mundo como conhecemos: a inteligência artificial, os computadores quânticos e a biotecnologia.
Suleyman, cofundador da DeepMind, não trata essas inovações como eventos isolados, mas como parte de uma grande onda: uma força inevitável que vem se formando e agora avança com intensidade crescente. Ele argumenta que, tal como o surgimento da imprensa de Gutenberg revolucionou a transmissão e o armazenamento do conhecimento, a IA promete um impacto ainda mais abrangente. A comparação com a prensa é uma das imagens mais poderosas do livro: Gutenberg queria difundir a Bíblia, mas acabou catalisando o Iluminismo (um movimento que questionaria as próprias bases da autoridade religiosa). Da mesma forma, a IA pode servir para libertar e ampliar o potencial humano… ou para concentrar poder em mãos perigosas.
O autor levanta um alerta: é preciso que essa nova onda seja guiada por responsabilidade. A tecnologia, por si só, não é boa nem má, mas o modo como a usamos determinará seu impacto. Assim como a aviação se desenvolveu com altos padrões de segurança graças ao compartilhamento aberto de erros e acertos, a IA também precisa seguir um caminho colaborativo e transparente. É fundamental que a indústria adote boas práticas e que existam acordos internacionais robustos, como os que regem o setor de energia nuclear, para prevenir usos autoritários ou descontrolados.
O que The Coming Wave nos mostra com clareza é que o futuro está sendo moldado agora, e ele nos convida a sermos participantes ativos desse processo. A inteligência artificial pode, sim, tornar nossas vidas mais leves, mais eficientes e mais humanas. Mas para que isso aconteça, é preciso que estejamos atentos, engajados e éticos.
Essa leitura é obrigatória para quem quer entender não só o que está por vir, mas o que já está aqui e o papel que cada um de nós pode ter em surfar essa onda, ao invés de ser engolido por ela.
Há livros que nos transportam para mundos imaginários. Este, porém, nos leva a uma realidade que existiu (luxuosa, deslumbrante, profundamente desigual) e cujos ecos ainda reverberam no presente. Maria Antonieta, de Stefan Zweig, é um desses livros mágicos. Mágico não porque evoca o passado, mas porque tem o poder de nos fazer “visitar” uma época, sentir as festas e ouvir os sussurros nos corredores de Versalhes.
O autor se apoia em uma pesquisa minuciosa, especialmente nas cartas trocadas por Maria Antonieta e nas impressões que ela causava na corte. Mais do que relatar fatos, Zweig convida o leitor a um exercício de empatia histórica… Entramos no universo de uma mulher que, aos olhos da sociedade, era símbolo de tudo que havia de errado – mas que, ao olhar de perto, revela-se apenas uma jovem despreparada, mundana, desinteressada por política, jogada no centro de uma tempestade que não compreendia.
Zweig não pede desculpas por ela, mas também não a condena. Ele revela uma personagem feminina profundamente trágica: alguém que não escolheu ser símbolo, mas que foi tragada por um destino grandioso demais para os seus próprios feitos. Ao contrário de figuras como Napoleão, que desejaram a imortalidade histórica e aceitaram o preço de suas escolhas, Maria Antonieta teve um fim grandioso imposto a ela. E isso, por si só, já é uma tragédia.
Seus erros foram reais. Sua desconexão com o povo é inegável (e ela sabia muito bem da fome em Paris nas suas idas à Ópera). Mas o livro não é um panfleto político. Não tenta normalizar as desigualdades (essas, infelizmente, continuam escandalosamente atuais), mas sim abrir um espaço para contemplar a complexidade humana dessa figura histórica. No fim, talvez o mais revolucionário não tenha sido Maria Antonieta como símbolo, mas o nosso esforço de compreender a mulher por trás do mito.
Ler Duna foi uma experiência realmente marcante, daquelas que ficam com você por um bom tempo depois da última página. Foi ainda mais especial porque li com meu pai, e isso reacendeu nele o gosto pela leitura. Ele não só mergulhou no universo de Duna, como já está finalizando a trilogia! ⠀ O livro nos transporta para Arrakis, um planeta desértico onde água é mais preciosa que ouro e onde se encontra a especiaria mais valiosa do universo: o melange. Mas Duna vai muito além de um cenário exótico ou de uma aventura interplanetária. É uma obra profundamente política, filosófica e até espiritual. ⠀ Frank Herbert constrói uma narrativa densa e visionária que fala de ecologia, religião, manipulação ideológica, colonialismo e poder. É impressionante perceber como esse livro, publicado nos anos 1960, lançou as bases para grande parte do sci-fi que viria depois. Tudo que conhecemos hoje no gênero parece ter, de alguma forma, um traço de Duna. ⠀ Ao longo da leitura, consegui visualizar muitos elementos que foram levados ao cinema, mas o livro vai muito além do que o filme mostra. O imaginário de Herbert é vasto, e sua construção de mundo é rica em detalhes. A trajetória de Paul Atreides até se tornar o lendário Muad’Dib é feita com muita sutileza e profundidade. ⠀ Foi uma leitura realmente incrível. Um livro vanguardista, cheio de camadas e com um universo tão bem amarrado que, mesmo sendo ficção, parece absolutamente real. ⠀ Comecei o segundo volume da série, O Messias de Duna, mas confesso que não teve o mesmo impacto. Senti que boa parte da construção do personagem se perdeu. ⠀ Ainda assim, só o primeiro já vale por uma saga inteira. Uma leitura que recomendo e que, no meu caso, ainda veio com o bônus de ser compartilhada com meu pai, o que a tornou ainda mais especial.
“Cada detento uma mãe, uma crença Cada crime uma sentença Cada sentença um motivo, uma história de lágrima Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo Misture bem essa química Pronto, eis um novo detento”
Diário de um Detento. Racionais Mc.
Ler “Ressurreição” é nadar contra a maré. É abrir a mente para a perspectiva de milhões de pessoas que hoje estão no cárcere. É sair da zona de conforto e entender mais profundamente como o sistema criminal funciona.
“Ressureição” é um livro atemporal e que, por isso, se encaixa na realidade que temos hoje em pleno século XXI. O livro questiona pontos básicos do Direito Penal, como a finalidade da pena e o próprio sistema carcerário. Por esse motivo, entendo que a melhor maneira de abordar essa resenha é pegar uma citação atual e que segue a mesma proposta da obra.
O Tolstói que conheci em “Ressurreição” (seu último trabalho) é diferente daquele que escreveu “Anna Karênina” e “Guerra e Paz”. O dom da escrita segue o mesmo, mas a abordagem e realidade dos personagens contrasta muito com as outras obras, pois o foco é o próprio sistema criminal. Foi incrível conhecer essa faceta de Tolstói e ler esse livro que se tornou um dos meu favoritos da vida.
O livro é baseado em no caso real de um rapaz nobre que participa como jurado no julgamento do crime de uma antiga camponesa conhecida por ele. Por diversos motivos, ele se sente culpado pela vida que ela estava levando (sem spoilers) e, além disso, a mulher também acaba sendo presa injustamente. Nesse sentido, o rapaz busca meios de redimir seus pecados e ter uma vida limpa e justa. Ele nem sempre busca a maneira mais correta, e isso é genial porque permite que ninguém seja 100% bom ou mau o tempo inteiro (nem mesmo os outros personagens).
No fim, não se sabe ao certo de quem é a ressurreição. Mas o sentido bíblico da palavra é altamente utilizado e tem diversas referências – como os principais acontecimentos ocorrem perto do período da Quaresma e até mesmo partes que recordam Mt 25, 36.
As reflexões que o personagem principal faz não são apenas profundas, como também necessárias. O livro é essencial para as pessoas compreenderem a realidade social brasileira, na medida em que o Brasil é o país que mais prende pessoas no mundo e possui um sistema criminal/prisional problemático. Eu acredito que todo mundo deveria ler o livro, independente se é operador do Direito ou não. É uma lição de empatia e aguça o sentido crítico e filosófico.
A leitura me lembrou outras obras igualmente importantes e críticas, como o filme “13a emenda” (disponível na Netflix) e os livros abaixo:
Os links acima são afiliados.
Além disso, tenho um vídeo que mostra um pouco sobre as reflexões feitas pelo protagonista (minuto 4:37). O vídeo é sobre o universo de Harry Potter, mas segue a mesma linha proposta pelo protagonista de “Ressurreição”:
Esse foi o meu primeiro contato com uma obra de Joyce e confesso ter ficado bastante impactada. Gosto do tipo de livro que abraça temas universais e foi exatamente o que “Dublinenses” me mostrou.
“Dublinenses” é um livro de contos curtos que se passam na cidade de Dublin, Irlanda. Os contos têm muitas coisas em comum, mas a que mais me chamou a atenção foi a sensação de “nó na garganta” e opressão. A opressão e essa sensação de “algo não dito” é explorada de diversas formas e por narradores diferentes (crianças, homens e mulheres), o que torna cada conto muito peculiar do outro.
A perda de uma chance de viver os próprios sonhos, o silêncio que paira nas coisas não ditas e até melhor se conformar com o status quo são alguns dos temas universais que Dublinenses aborda. Eu gostaria de entender melhor como cada conto se relaciona com a realidade irlandesa, mas me falta muito estudo para isso. Então esse texto tem apenas impressões de uma leitura comum.
Eu li o livro em seu idioma original (inglês) e achei uma leitura boa e com nível de complexidade médio. O livro é um pouco mais “sombrio” por tratar de assuntos que causam uma certa angústia. Então, caso queira ler, já se prepare para uma profundidade impressionante nesses sentimentos tão diários, mas pouco explorados.
“People are almost always better than their neighbors think they are.”
“Middlemarch, A Study of Provincial Life” é uma obra da autora britânica Mary Anne Evans, que escreveu como George Eliot. O livro apareceu pela primeira vez, no formato de oito volumes, de 1871 a 1872. A obra é situada em Middlemarch, uma cidade fictícia inglesa de Midland, de 1829 a 1832, e retrata a realidade dos moradores daquele local (casamentos, projetos, mudanças sociais e políticas, etc.).
Agora viajar e conhecer a cidade de Middlemarch:
Meu primeiro conselho para essa viagem é se preparar para imprevistos. Middlemarch é um local em que não se deve criar expectativas, pois seu planos possivelmente darão errado. Assim como o nosso ilustre narrador disse “we mortals, men and women, devour many a disappointment between breakfast and dinner-time”. Essa sensação de “dar tudo errado” permite com que os personagens se desenvolvam brilhantemente e desafia o leitor. Isso não é fácil, mas estamos em boas mãos com Eliot, que faz esse desafio ser uma experiência enriquecedora.
Parte desse mérito se dá pelo fato dos personagens serem humanos: ninguém é 100% bom e nem 100% mau. As heroínas e os heróis falham em algum momento, ainda que depois tudo ocorra bem (ou não rs). Penso que a sensação de decepção ocorre por conta da grande ambição de alguns moradores de Middlemarch. É aquilo: melhor criar unicórnios do que expectativas, não é mesmo? rs
Queria escrever sobre alguns personagens centrais, como Dorothea Brooke, Tertius Lydgate, Caleb Garth e Nicholas Bulstrode. Mas acho que é mais interessante falar da obra como uma mentalidade coletiva, pois a cidade não se restringe apenas aos personagens e, muitas vezes, impactam diretamente os objetivos deles.
O clima de Middlemarch é de mudança e pressão social. A origem das famílias conta muito para a reputação na sociedade. Então, se a sua origem não é conhecida, não recomendo a viagem para lá.
Além disso, Middlemarch se passa durante um período tumultuado na história inglesa, quando mudanças políticas, científicas e a própria industrialização causaram um grande impacto no país. Os moradores de Middlemarch se opõem inflexivelmente à reforma política e científica, tanto pelo medo da mudança quanto pelo apego a modos de vida antigos e disfuncionais. Essa oposição intensifica a impressão de que eles são uma comunidade retrógrada, desconfiada de mudança e progresso – mesmo que isso possa beneficiá-los.
Senti que Middlemarch foi uma ancorada. Um livro que coloca os nossos pés no chão e faz a gente sentir que nem sempre a vida é linda e que nem sempre tudo é aquilo que sonhamos. Foi um livro divertido e, ao mesmo tempo, melancólico.
Se quiser ver a minha análise sobre Direito e Middlemarch (Livro V), assista o vídeo:
“People saying how you’ve become too clever. There’re afraid because they can’t follow what’s going on inside any more. They can see what you do. They accept that your decisions, your recommendations, are sound and dependable, almost always correct. But they don’t like not knowing how you arrive at them. That’s where it comes from, this backlash, this prejudice.” Klara and the Sun (Kazuo Ishiguro – p. 328).
A observação com uma atenção direcionada faz parte da maneira em que aprendemos as coisas no dia-a-dia. E, na medida em que imprimimos os nossos valores em nossas criações, os robôs humanoides também teriam essa capacidade. Isso é o que acontece com Klara, grande protagonista da obra “Klara e o Sol” de Ishiguro.
Essa obra, para mim, representa o quanto colocamos o melhor de nós em nossas criações. Klara é uma robô criada para diminuir a solidão de crianças abastadas em um futuro distópico. Há uma clara separação social e biológica entre as pessoas, mas isso deixarei em “aberto” para vocês ir descobrindo no decorrer da leitura (mas fica a dica!).
A Klara é a combinação do que há de melhor no ser humano. Ela tem um amor, carinho e atenção que só os mais nobres poderiam demonstrar. E, por isso, ela é também diferente dos outros robôs. Ela pensa que observa muito bem os humanos, mas eu discordo. Acredito que ela observa os humanos dentro de um ideal e, com base nele, interpreta o que acontece. Caso ela puramente observasse os humanos e aprendessem com eles, talvez ela se tornasse um robô da Microsoft ou um pouco mais como os outros robôs de sua loja.
Mas ver o mundo pelos olhos da Klara é uma experiência muito boa, porque permite com que a gente faça uma autorreflexão. O livro é de altíssima sensibilidade e tem altos e baixos nos acontecimentos na vida de seus personagens. Ishiguro consegue mudar o clímax do livro de “meigo” (por assim dizer rs) para assustador de maneira brilhante. A escrita é linda e muito bem trabalhada.
Não tenho o costume de ler livros sobre robôs ou futuros distópicos, mas esse foi muito bom e me fez querer conhecer muitos outros. Recomendo esse livros para todes!
Quem leu a obra “Middlemarch” sabe que os mortos continuam influenciando a vida dos vivos por meio de seus testamentos. Esses documentos, além de impactarem a vida de diversos personagens, também são um instrumento jurídico, e acho importante (e legal) dividir um pouco sobre eles na perspectiva da Inglaterra retratada por George Eliot.
Enquanto desenvolvia a obra entre 1º de novembro e 17 de dezembro de 1869, George Eliot leu “Ancient Law: its connection with the early history of society and its relation to modern ideas” de Henry Maine. Nesta obra, ela teve contato com leis romanas que explicavam as raízes dos princípios da lei inglesa. Com base nessa leitura, ela incluiu algumas questões jurídicas em Middlemarch, em especial sobre testamentos.
Na Inglaterra Vitoriana
Na Inglaterra vitoriana, existia um enorme interesse nos testamentos, pois esses documentos poderiam conter fofocas, como declarações amargas por parte do falecido e até mesmo desaprovações. A obsessão por testamentos pode ter como influência esses aspectos incomuns que o falecido deixava no documento, além de também não existir a obrigatoriedade de passar propriedades aos filhos e cônjuges. Um caso muito interessante é o de Sir Thomas May de Londres, que em 1887 deixou um xelim para sua esposa e filha, enquanto legava uma soma anual de £100 para seu empregado (uma quantia grande para a época!).
Ainda que atiçasse a curiosidade alheia, os testamentos não eram comuns. Em 1850, apenas cerca de 15% dos adultos que morreram deixaram riqueza suficiente para fazer da herança um assunto que valesse a pena; a maioria das pessoas morria sem nada ou estavam endividadas.
Mesmo entre aqueles que tinham algo para deixar, as desigualdades eram gritantes. Em 1911, 90% das propriedades eram avaliadas em menos de £1.000 – coletivamente, elas representavam apenas 10% da riqueza total passada na morte. No outro extremo do espectro, apenas 0,1% das propriedades estavam avaliadas em mais de £50.000, embora coletivamente essas propriedades representassem 38% da riqueza total.
Os fundos (trusts) eram uma ferramenta comum para garantir que as crianças se beneficiassem, com o tempo, da riqueza deixada pelos pais. Na morte de uma pessoa com propriedades, a maior parte de sua riqueza passaria para administradores nomeados. Quando a cônjuge do proprietário falecido morria, ou quando os filhos atingiam a idade adulta, os bens mantidos em confiança eram divididos ou vendidos pelos curadores e compartilhados, geralmente igualmente, entre todos os filhos sobreviventes.
Mão Morta e Entidades Religiosas
Além dessa curiosa sobre o período vitoriano, há algo interessante em um dos testamentos que aparecem em Middlemarch – que é a famosa “mão morta”. Para entender o que é essa “mão morta”, é preciso voltar um pouco no tempo:
Na Inglaterra medieval, a propriedade do inquilino de um feudo estava sempre sujeita à vontade de seu Senhor. Se as circunstâncias legais daquele inquilino mudassem de alguma forma – se ele se casasse, por exemplo, ou morresse, ou cometesse um crime – então aquela propriedade era revertida e o Senhor poderia escolher com qual feudo substituí-la. No entanto, essa liberdade era negada quando os inquilinos doavam a propriedade a uma entidade religiosa – pois a Igreja é uma instituição que não morria, não se casava ou mudava de qualquer forma seu status legal em benefício do Senhor, e o arrendatário era livre para mantê-las sob a égide do corpo religioso.
Os feudos também geravam impostos para o rei, principalmente sobre a concessão ou herança de uma propriedade. Se um imóvel se tornasse propriedade de uma entidade religiosa que nunca poderia morrer, esses impostos nunca seriam devidos. Era semelhante às propriedades pertencentes aos mortos, daí o termo “Mão morta” – mort main.
Uma vez que a terra passou para o controle da Igreja, ela nunca poderia ser abandonada. Como a Igreja nunca morreria, a terra nunca poderia ser herdada por morte (portanto, nenhuma taxa poderia ser cobrada pela entrada do herdeiro), nem poderia ser roubada ao senhor (perdida por falta de herdeiro). Isso veio a ser conhecido como a “mão morta” (francês: mortmain) – a Igreja (uma entidade não viva) representava essa mão morta, ou a mão era a do doador morto, que na verdade ainda controlava a terra como se vivo estivesse. Assim, as ações de homens que morreram gerações antes continuaram a controlar suas antigas terras (assim como acontece com um personagem de Middlemarch que morreu e, ainda assim, controla a sua propriedade).
Os Estatutos de Mortmain visavam restabelecer a proibição de doar terras à Igreja com o objetivo de evitar serviços feudais, uma proibição que se originou na Carta Magna de 1215. Os Estatutos de Mortmain previam que nenhuma propriedade poderia ser concedida a uma corporação sem o consentimento real e de seu Senhorio.
Pela Lei de 1279, que é uma parte dos Estatutos de Mortmain, nenhuma pessoa religiosa tinha permissão para adquirir terras. Se o fizessem, a terra era confiscada ao senhor feudal imediato, que teria um breve período para confiscar a propriedade. Se não o fizesse, o senhor logo acima dele (na hierarquia feudal) teria uma oportunidade semelhante.
No entanto, estes Estatutos revelaram-se ineficazes na prática. Pois se o suserano estivesse disposto, a terra ainda poderia ser doada a uma casa religiosa com sua cumplicidade, ou seja, por sua inação. E licenças do rei para adquirir terras em mortmain foram facilmente obtidas naqueles anos, pois Henrique III era simpatizante dos corpos religiosos durante seu longo reinado.
As leis referentes ao mort main existiram na Inglaterra desde o século XIII até que foram finalmente revogadas em 1960.
Que livro misterioso foi esse! Anne Brontë nos presenteou com essa obra-prima única e cheia de surpresas. O livro foi publicado em 1848 sob o pseudônimo de Acton Bell e foi um sucesso instantâneo! mas após a morte de Anne, sua irmã Charlotte impediu sua republicação na Inglaterra até 1854.
Tudo estava claro e ordenado até a chegada de uma nova vizinha… Helen Graham, uma jovem viúva que se muda para Wildfell Hall (uma mansão elizabetana) com o seu filho e uma empregada. Pouco se sabe sobre Helen… na verdade, os vizinhos sabem praticamente nada sobre ela. E quanto mais eles tentam descobrir, menos ela revela sobre si, gerando uma insatisfação coletiva e o desejo por fofocas.
As fofocas começam a circular por toda a vizinhança, mas não convencem Gilbert Markham, um jovem fazendeiro da região. Gilbert decide descobrir a verdade sobre essa mulher tão curiosa e acaba se tornando o narrador perfeito!
O livro é escrito no formato de cartas, que Gilbert envia para o seu amigo sobre suas descobertas. Mas o que deixa Helen ser tão misteriosa? Isso só poderá ser respondido ao ler o livro, mas o que choca a população é o quanto Helen quebra as normas sociais de sua época (sua forma de sustento, forma de educar o seu filho, visão sobre casamento, etc).
Até aqui já deu para perceber que o livro trata sobre diversos assuntos e, por isso, acho que é tão profundo e completo. Anne navegou a fundo nas questões de sua época e no que realmente significava ser uma mulher do século XVIII, pois dá para “sentir na pele” muitas das questões que existem até hoje na nossa sociedade (dependência química, violência doméstica, casamento, maternidade, direito das mulheres, etc).
A experiência de ter lido tudo isso na perspectiva de uma mulher da época deixou tudo ainda mais latente e me sinto grata por ter tido a oportunidade de ter lido essa obra de Anne Brontë e o contato com a sua escrita única e envolvente. É completamente diferente do que vemos com outras obras de época e muito mais paupável… muitos risos, apertos, lágrimas e emoção!
É muito cômodo pensarmos que as mulheres não tinham direitos na época e que tudo era “pacífico”… Essa não é a verdade e Anne Brontë desmistifica isso nos mostrando como as mulheres resistiam (cada uma à sua maneira). Lembrando que até a aprovação do Married Women’s Property Act em 1870, uma esposa não tinha existência independente sob a lei inglesa e, portanto, nenhum direito de possuir propriedade ou celebrar contratos separadamente de seu marido, ou processar por divórcio, ou pelo controle e custódia de seus filhos.
Eu gostaria de escrever realmente TUDO o que senti com esse livro, mas quero que mais pessoas leiam e se surpreendam como eu na leitura. Esse livro tem um espaço especial no meu coração e espero que ele também ganhe um no de você que está lendo esse texto. Li o livro em inglês e, para praticar o idioma, acompanhei a leitura com o audiolivro abaixo:
Caso queira conhecer mais sobre o Direito Civil da época, veja o vídeo abaixo ou acesse a página do Livros de Lei no Instagram ou no Spotify.