“Sabe, às vezes, tenho a impressão de que vivemos num mundo que nós mesmos projetamos. Determinamos o que é bom e o que é ruim, desenhamos mapas de significados… E depois, durante a vida inteira, lutamos contra aquilo que concebemos. O problema é que cada um tem a sua própria versão, por isso é tão difícil as pessoas chegarem a um acordo”.
TOKARCZUK, Olga (1962-). “Sobre os Ossos dos Mortos”. Tradução de Olga Baginska-Shinzato. São Paulo: Todavia, Primeira Edição, 2019. Página 207.
Já aviso desde já que esse post possui spoilers! O link para compra do livro na Amazon é Sobre os ossos dos mortos
Eu vi que muitas pessoas estavam comentando sobre esse livro, até porque sua autora recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2018 após dois meses da publicação da obra nos Estados Unidos. Eu considero que a leitura teve um nível de dificuldade mediano por conta das digressões (mas sem perder o suspense!).
O livro nos apresenta Janina Dusheiko, uma idosa polonesa, que vive em um vilarejo rural na Polônia, próximo da fronteira com a República Tcheca. Ela é a protagonista da história e passa a maior parte do seu tempo estudando astrologia e traduzindo textos de William Blake para o idioma polonês. Ela é uma personagem com uma pegada bastante filosófica e reflete sobre a cultura e os comportamentos humanos em geral.
Uma característica marcante de Dusheiko é de que ela não gostava de nomes. Logo, ela acredita fazer sentido criar nome para as pessoas (e lugares) de acordo com as suas características e acontecimentos. Essa parte me lembrou muito Anne of Green Gables. Ainda, outro fato sobre a personagem é que ela havia perdido as suas duas cachorrinhas e acabou ficando bastante famosa no vilarejo devido a sua busca por elas.
No decorrer na história, a gente acaba conhecendo um pouco mais dos costumes poloneses e acompanhando a investigação que Dusheiko faz com seus amigos em relação aos crimes que estavam ocorrendo no vilarejo. Todos os crimes eram cometidos em face de homens caçadores da região e tinham algum elemento vinculado a animais.
Dusheiko sempre foi bastante ativa no envio de correspondências para a polícia a fim de que as autoridades se posicionassem quanto à caça de animais na região. Entretanto, nada acabava resolvido, pois os policiais não eram apenas amigos dos caçadores, como também caçavam com eles. Dusheiko se envolve tanto com os animais que, até certo ponto do livro, ela começa a se “misturar” com eles, até mesmo chamando as suas próprias mãos de “patas”.
O leitor acaba se envolvendo bastante com Dusheiko e entende a causa que ela defende. Em muitas partes do livro, é possível se emocionar bastante com as falas em defesa dos animais que a personagem faz. Por exemplo, “o ato de matar se tornou impune. E por ser impune, ninguém o percebe mais. E já que ninguém percebe, não existe. Quando passam pelas vitrines dos açougues onde grandes pedaços vermelhos de corpos esquartejados são pendurados em exposição, acham que aquilo é o quê? (…) Nada disso assusta mais. O assassinato passou a ser considerado algo normal, virou uma atividade banal” (p. 101).
Sabemos também, ao decorrer da história, que Dusheiko possui uma doença bastante severa de pele e que possui sonhos muito reais com sua mãe e avó, ambas falecidas. Esses sonhos são quase uma pista da escritora para o fim da história.
Como a história toda foi dita sob a perspectiva de Dusheiko, acabamos nos perdendo nas ideias dela e não tendo uma perspectiva independente da realidade como geralmente temos nos livros. No fim da história, Dusheiko revela que possui um transtorno de personalidade e que ela mesma havia praticado todos os assassinatos da cidade. Ela havia cometido os crimes em nome dos animais que, supostamente, haviam escolhido ela para defendê-los.
É revelado que os seus cachorros foram mortos por um dos homens que ela havia assassinado e que ela tinha total consciência sobre isso. Mas o que me deixou curiosa foi que os amigos de Dusheiko acreditaram nela e a ajudaram em uma fuga para a República Tcheca.
Fica a questão: será que devemos encarar a história sob uma perspectiva mais realista (com relação ao nosso mundo) ou devemos seguir na fantasia em que os animais poderiam, de fato, ter convocado Dusheiko para cometer os crimes?
Fica a dúvida!